Foto que não desbota

 

 

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Estava aqui quietinha e pá! Um lampejo com tua figura. Um sorrisão na minha frente. Um aperto.

Deu saudade aguda de quando querias voltar ao útero dos meus olhos. Me agarravas pelos ombros com quase brutalidade, forçando o enfrentamento cara a cara e sorrias dentro do meu olho de uma forma tão desavergonhadamente bonita que ficou fotografado na minha memória e a foto deste momento, ali cravada com grampos.

Me olhavas com tão assustadora e hiperbólica intensidade, com as pupilas dançando de um lado ao outro, buscadoras de alguma entrada dentro dos meus olhos. Era uma ânsia, mas de uma ternura que me afrouxava a alma. Nesta hora queria ter sabido acalmar tua doce aflição da falta de palavras. Cheguei a pensar que aquilo era uma avalanche de afeto não contido. Ou que tu querias devolver-me algo que eu nem sabia que tinha te dado. Talvez quisesses dizer que estava tudo bem contigo, já que não tinhas meios normais de expressá-lo. Sempre ficava intrigada quando isto acontecia. E imensamente preenchida. Que magia a daquela hora!

Naquela mirada tu conseguias estabelecer a maior das formas de comunicação: a do amor puro e genuíno.

Acho que foi a forma que  encontraste de, mais que amar, agradecer. Seria um desague de obrigadas? Ah, se tu soubesses, que EU é que te era tão grata! Acho que era mesmo um desague de amor.

Nos teus últimos dois anos de vida, no entanto, já não ocorria mais. Este olhar dentro dos meus olhos. O amor já não conseguia sair. Prisioneiro de um corpo em sofrimento, ardias em desejo de ir embora. Minha dor era perceber que  já não eras mais feliz. E eu como tu. A impotência, monstro cruel, alimentava-se de minhas tentativas fracassadas de ajudar-te. Só me restara amar-te ainda mais e rezar para que encontrasses a paz perdida. O alívio de um corpo torturado pela doença. O oásis, enfim, onde tua alma poderia merecidamente descansar.

Amor até o fim. Pois no fim, tudo o que se tem é o amor. Só o amor faz sentido. Leo, foste isto. O amor que deu sentido à minha vida.

1-Amor bem bandido - Cópia

 

foi EXCESSO de gratidão

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É noite fria e chuvosa numa cidadezinha do interior da França. Cê e Jota saem para comprar pão para levar para o hotel onde estão hospedados, mas a única casa aberta àquela altura vende produtos para confeitaria, métier dela. Olhos brilhantes, entra e acaba adquirindo mais um termômetro para chocolate. Estava selado o meu destino e Cê ainda nem imagina como.

Cê e Jota voltam para Lisboa, onde vivem a maior  parte do tempo.

Meses depois voam para o Uruguai a fim de passar uma semana conosco na chácara. Chefes de renome internacional, com muitas, muitas estrelonas Michelin no curriculum, chegam com um tempinho danado de ruim, na semana mais negra do inverno uruguaio. Muito frio e muita chuva. Mas os papos andavam atrasados e a companhia uns dos outros era o ponto forte da reunião; havia liga e muita sede de desfrutar desta química. Outro componente infalível costuma ser a fome física, infinda, inabalável, dos quatro.  E assim tudo o que tínhamos a fazer era jogar os Jogos da Fome. Conversa aqui, risadas acolá, vinho, música, mise en place e muitos preparos com ingredientes locais. Os hongos ( cogumelos ) da chacra, as maçãs, as morcilhas, o entrecôte, o matambrito de cerdo todos coadjuvantes no jogo bonito da amizade. Inesquecível o bacalhau preparado com -pasmem- chucrute à moda do chef e uma sobremesa fantástica de massa folhada com maçã e dulce de leche local que ele acabou inventando. A salada uruguaia, as empadinhas da chef Cê ainda bailam ante meus olhos e perduram nas dobrinhas da minha aborrecida cintura. A isso nomeamos felicidade, não resta dúvida.

Num preparo acabo demonstrando interesse pelo tal termômetro francês, ignorante que sou.

Um dia antes da partida dos amigos subi ao hall que leva à sala de tevê no andar superior, fazer sei lá o que. Cê sorridente me alcança e gentil me presenteia o termômetro pelo qual fui fisgada. E bota isca nisso! No calor do momento, visceral e atabalhoada que sou, atiro meus braços ao redor do seu pescoço em eufórica gratidão. Beijo a bochecha da amiga com estalo e gosto e viro afoitamente batendo em retirada em direção à porta do closet. A câmera lenta é ligada, enquanto o pé esquerdo gira sobre a Croc de modo infeliz e vou primeiramente batendo as costas no armário atrás de mim, gerando um barulhão e o primeiro baque, seguido de um lento e ridículo movimento de queda irrefreável, tendo eu , já neste instante, consciência total do exagero da virada causadora do infortúnio, como também da imbecil trapalhada que é estar caindo sobre mim mesma, infeliz e única culpada do trauma que se segue quando o peso do corpo todo recai sobre a mão fechada que acaba de achar o solo, na queda de bunda inteira, com uma gravidade absurda, capaz de ter rachado o porcelanato e ter enterrado o cóccix nele uns bons centímetros, se bobear.

Uma dor lancinante de rompimento dentro do ombro esquerdo me pôs a chorar e a rir do ridículo papel, tudo ao mesmo tempo. Não consegui erguer mais o braço nem para frente, nem para o lado. Tudo que lembro é da dor pulsante, muito viva, e das lágrimas teimando em escorrer no meu rosto duro de vergonha e tão acostumado que está a esconder com sucesso a dor.

Cê a estas alturas, inocente de tudo, havia girado nos calcanhares e se dirigia à escada para descer. Meu marido gritou: o que foi?  Só aí Cê virou-se e deparou comigo arriada junto ao armário, amparada pela quina de uma parede, a me esvair em incredulidade e lágrimas. Tentou me erguer, no que a impedi, ciente da impotência de poder levar isso a cabo. Kadado voou escada acima e assim, com este séquito, ergui minha desonrosa bunda do piso frio e desci segurando o braço e tentando dissimular que estava péssima. Afinal, restava ainda todo aquele dia pela frente e o outro. Não poderia enxovalhar a alegria dos nossos últimos momentos junto aos amigos. Cê bradava: maldito termômetro! Agora virou nossa piada particular. “Venha me visitar, mas não me presenteie nenhum termômetro”.

O bíceps latejava, dormir era difícil. Não bastasse o tormento, concomitantemente, começou a criar-se na nádega alguma coisa monstruosa, que eu, calejada, torturada que fôra por tantos, logo soube que estava a caminho um grande furúnculo hijo de perra. Não!!! Eles de novo não! E não era um qualquer. Era o Pé Grande. Era enorme, tão profundo, tão cavernoso e doloroso quanto uma cratera do inferno. Sem brincadeira, o monstro do Lock Ness latejava na minha nádega, tão enfurecido que parecia estar enterrando suas garras na minha carne, seu lago, em busca de comida .

O braço seguia incomodando. O maior incômodo, no entanto, era a dúvida. O que eu precisaria fazer? Fui protelando, sem conhecimento de especialista confiável aqui, longe da zona segura do Brasil, torcendo pela melhoria.

O marido receitou-me um remédio que ama e proferiu a sentença: dor muscular. Três semanas depois revoltei-me contra meu médico. Consultei por telefone um traumato, amigo antigo de Curitiba, que sugeriu rompimento de manguito rotator. Não!!! De novo? ( já havia operado o ombro direito há três anos, no Rio ). Basta! proferi para mim mesma. Instaurada a busca por um especialista em ombro, segui para a terra natal bem escorada pelo marido e médico charlatão.

O Pé Grande acabara de implodir-se, deixando uma grande cratera aliviada. Um mês antes do aniversário, no inferno astral que devia estar chegando ao final- assim o desejava com afinco e esperança- a operação finalmente é marcada para 6 de setembro. Meu desfile patriótico seria participar do pelotão de bisturis, fios e âncoras, na santa casa de Rio Grande no dia seguinte.

Quase três meses depois, cá estou. Operada, sem tipoia e fazendo fisioterapia.

Mais gorda, com mais cicatrizes e muito mais história pra contar.

Fiz novos amigos, encontrei a solidariedade de pessoas novas assim como das antigas amizades. Pude voltar ao seio materno por um tempo, onde o lugar da gente está sempre preservado e morno. Pude sentir o amor e o cuidado do meu marido. Na saúde, na doença.

E posso sorrir lembrando meu tombo, meus amigos amados que foram testemunhas do ocorrido e ainda usar o termômetro francês vermelho para seduzir e atrair minha amiga Cê de novo para cá a fim de extrair dela umas lições de como usá-lo.

No mínimo, posso tirar uma boa lição de tudo: que manguitos podem se romper por excesso de gratidão.

 

Ps: o manguito do ombro direito foi rompido por excesso de gentileza ao aceitar a mão de um companheiro de jornada desconhecido que subia comigo a Pedra da Gávea, no Rio. Ele puxou meu braço com tal entusiasmo que lasquei-me.

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CRÔNICA TARDIA

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Sempre apreciei a natureza, mas, menina da cidade, nunca havia escutado os tons, menos ainda, os semitons do seu chamado. Os graves, os agudos, a escala musical toda, regida por ela magistralmente, ficavam no campo do meu imaginário. Meu lado bicho-grilo era meio muquirana. Ou estava sedado.

Agora vivo um momento de descoberta e encantamento diários, em meio a duendes, fadas, silfos, ondinas e salamandras. Sem falar nos animais silvestres que, sem nenhum sinal de assombro, passeiam pés e asas neste mundo tão seu conhecido. Não há novidade para eles no sol, na chuva, no relâmpago, no entardecer, na geada, no estalar da secura, nem no vento polinizador. Há apenas a monotonia da beleza. A obviedade das estações. O dinamismo dos despertares. É a flor, é o fruto, é o limo da pedra, a umidade do solo. A valsa do sapo, o refrão do pássaro que diz Tu/tu…Tu/tu. Meu cachorro ergue as orelhas ao chamado do seu nome. Retardada eu, num ufanismo atrasado, verdadeiro surto de alegria com a descoberta do pote de ouro, me regozijo com tanta novidade, convencida da originalidade do meu achado e de que preciso contar aos outros a maravilha recém descortinada. A natureza é mesmo um grande mestre!

O sol sempre que pode me acende fogo nos ombros, bochechas. Os pés se imundam. Solas dos pés e mãos desertificam sem nenhum constrangimento. Pele exposta, coluna acordada. Mimetizada, encontro o tom maior da pequena felicidade. Vislumbro a enormidade do plano de Deus, a grandeza da sua genialidade criativa. Me curvo.

Preciso conter o dique da emoção líquida, mas ela desliza dos olhos sua alegria agradecida; lágrimas de joelho, rolam até alcançar este papel.

Na Chacra Camino de Los Angeles é assim. O Dia mal espreguiça já tem que passar café, varrer as naturezas teimosas, aguar  os pés das plantas. “Salve, salve”, gritam o pé de alface, a salsa, o coentro. Pés de fruta observam ansiosos a chegada do regador.

Dia mal começa é já é tempo de cortar cebola, batata, lavar o arroz e a verdura. A comida medita dentro da barriga do dia. O vinho lhe entorpece os sentidos. Mas Dia tem que seguir.

Louça lavada, Dia pensa em sentar no banco embaixo da árvore da canela. Mas está tão bonito que Dia vai colher flor no jardim, plantar Physalis, tirar roupa do varal. Dia pensa numa siesta. Mas está tão bonito que vai caminhar com Tutu e Romeu, catar pinha, respirar. Preguiçosa, começa a matear, já é fim de tarde. Arrancada de suas divagações, Dia percebe que é hora de fechar a porteira. É hora de Dia se fechar. Sentar na sombra da lua e apenas existir. Dia apaga primeiro no sofá. E morre ao chegar na cama. Morrem com ele todos os animais domésticos, enquanto a sinfonia noturna canta para todos uma antiga cantiga de ninar.

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Notícias da trincheira

E de pronto a vida te detém e te senta porque quer conversar contigo e não lhe fizesses caso.

E te fala. Te recorda coisas que talvez te havias esquecido. E te abraça. 

E neste abraço te lembra que só viestes viver. Não lutar, ganhar, nem saldar nenhuma dívida.

Só viver.

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Meus posts são bem egoístas, geralmente confessionais. Dou fé que uso a rede para me exibir, eximir, desabafar ou simplesmente contar história. Então senta que lá vem mais uma!

Fazia muito não escrevia nada no meu blog. E no front muita coisa aconteceu e pouco, de fato, aconteceu. Explico.

Da janela de nosso casamento de quase quarenta anos de idade, meu marido e eu sentimos soprar um vento- fim- de- estação. Botamos nossos dedos para fora tentando decifrar que rumo ele sugeria. Voar para onde agora? Qual a altura e distância do voo na nossa décima oitava e definitiva mudança?

Se aproximava a aposentadoria de kadado. Já não precisaríamos viver num Rio de Janeiro tenebroso, desgovernado, de futuro sombrio, refém do medo nos últimos tempos, quando me percebia diariamente metida em orações dentro do carro, rezando ao sair de casa e agradecendo ao voltar por termos tido nossas vidas poupadas daquela vez. Não esqueço de meu filho falando: “mãe, tenho que sair daqui antes que seja tarde demais”. Me marcou.

Resolvemos tirar do nosso baú dos sonhos um velho conhecido. O sonho de vivermos no Uruguai, mais próximos da família. Abandonado que fora após a morte de Leonardo, o sonho ressurgiu com o vigor do pássaro que viu sua gaiola ser entreaberta. Decidimos escancarar a porta da possibilidade, por mais radical que fosse mudar de hábitos, largar amigos, abarcar nova nacionalidade e modos de linguagem. Um medinho safado de bom na cola das nossas emoções nos empurrava como um Minuano que sai rasgando o pampa sem dó e cavalga na friagem da manhã.

O filho resolvera que iria casar-se e ir-se embora para outro país. 

O marido decidira fortemente aposentar-se, sem mais delongas e procrastinação, apesar do convite de seguir mais alguns quilômetros.

A grande casa do Itanhangá precisaria ser vendida, a despeito do desanimador e pouco promissor mercado imobiliário carioca. 

A chácara comprada um ano antes estava às vésperas de sua quitação.

Nervos à flor da pele.

Tudo era um grande ponto de interrogação e um celeiro de vontades e necessidades.

Kadado de fato fez checkout na empresa onde trabalhara por quarenta anos, a despeito das incertezas do momento. A mesma empresa, imaginem! um feito; uma janela bonita, patinada pelo tempo fechou-se com o cartaz escrito em cima: Foi bom. Fui Feliz. Obrigado.

Pois bem. O Pai nos ama. Nossa Senhora intercedeu. O universo assentiu dando um like gordo para esta família. O marido aposentou-se (agosto). O filho casou-se ( setembro). A casa imensa foi vendida ( outubro ), num timing muito impressionante. Como acreditar em “acaso”? Como agradecer tanto?

Para não ser fácil, o casório e a venda da casa, que aconteceram um na sequência do outro, foram acompanhados de um agravante: teríamos somente mais duas semanas para contratar e realizar a mudança internacional, depois da entrega da casa, simultânea a isto, e em tempo record ( outubro/ 4 nov).

Ficamos meio à deriva, morando por meses na casa de praia da minha mãe, no RGS. E meu marido com a sogra, de castigo. Enquanto isso tratávamos de todos os fabulosos trâmites…visto provisório, visto permanente de residência, cédula de identidade provisória, cédula de identidade permanente e lá se foram com galhardia cinco meses de angústias, esperas e acampamento, pois no último mês ( sem saber que seria o último) nos mudamos para a chácara no Uruguai, como que “dando um ultimato no destino”, com duas malas, uma cachorra e muita reza e mentalização positiva para receber logo a mudança do Brasil. 

( os gatos haviam ficado com nosso filho Alexandre e a nora Anne no apartamento que eles haviam telado para recebê-los sem que corressem risco de queda do sexto andar. Nos entregariam Nelsinho e Romeu quando a mudança tivesse chegado, evitando para eles um grande estresse) 

Na chácara apenas uma cama, uma cozinha semiaparelhada, um sofá na churrasqueira. Nada de distrações tipo cadeira, televisão, modernidades. A programação era providenciada pela natureza. Ouvir as árvores, os grilos, os sapos, os pássaros, as estrelas e a lua na nossa rádio bucólica.

De quatro de novembro de 2017 a cinco de abril de 2018 muita espera, obra, faxina e amigos achando que já habitávamos seguramente o paraíso havia tempo. 

Não aconteceu muita coisa nestes cinco meses, mas cansou-nos muito. Desgaste emocional e físico. Muita vassoura, balde, tinta, pincel e água de Melissa. Muitos brindes comemorativos a cada tímido ameaço de “sim”, de migalhas das alfândegas e agentes aduaneiros. Muita frustração, angústia e sentimento de conquista e de espírito desbravador. Será que daria certo? Uma pequena fortuna fora paga à transportadora escolhida. Ao menos agora nossa casa já singrava o mar até Montevidéu. Acompanhávamos o navio MSC Vita por um sistema de rastreamento marítimo, com a alegria de crianças jogando seu videogame predileto (batalha naval, nem pensar!). Tanto que quando o Vita passou ao largo de Punta del Este, corremos a saudá-lo de longe; dois esfuziantes maluquinhos a desejar boa viagem ao capitão e tripulação, de pé num acostamento em Punta Ballena, acenando com as mãos acima da cabeça, sem medo de parecermos dois idiotas. Mais uma comemoração no fim deste dia!

Alexandre e Anne, às vésperas de mudarem para o Canadá, vieram trazer os gatos até Montevidéu, onde os esperávamos. Aqui em Maldonado aproveitariam para relaxar e passar conosco uma semana antes de partirem definitivamente rumo à nova vida. No fim, o universo conspirou mais uma vez a nosso favor e nem tanto para eles. Chegaram com a casa ainda vazia no dia 29 de março, dia do aniversário do Xande e a mudança ainda pegou-os por aqui no dia 5 de abril, de modo que nos ajudaram e suaram as camisetas por dois dias intensos, com calor e mosquitada antes de partir e nos ajudaram no logística e cuidado com os gatos. Romeu despediu-se de seus pais. E nós, do calor da segurança de ter o filho perto no Brasil. Foi uma despedida bonita, cheia de nós nas gargantas.

Estávamos cansados no final da peleia ( descarregamento de dois containers grandes ), sabedores da trabalheira que seria botar uma casa grande dentro da outra, mas ávidos por fazê-lo depois de tanto tempo com o grande ninho vazio. Xande e Anne agora, haviam partido. Só os veríamos no fim do ano, quando fôssemos visitá-los. Um sentimento agridoce nos percorria. A casa teria vida com os bichos, com a gente, mas nunca a felicidade seria completa. O filho,a nora, os netos provavelmente nunca desfrutarão deste ninho celestial. Não, não existe felicidade plena. Só pequenas felicidadezinhas. Tê-los aqui, foi uma delas.

Uma coisa é certa. Não é fácil caminhar. 

Li em algum lugar que se o caminho estiver fácil, não está certo.

Ao meu ver a gente sabe que o caminho está certo quando perde o interesse de olhar para trás. E assim tem sido.

Olhamos com amor o caminho percorrido, as fases vividas. A canseira, a dúvida, os acertos, os filhos criados e devolvidos ao mundo e ao céu.

Alexandre, casado, agora vive com sua esposa no Canadá, começando sua história a dois. Nós estamos recomeçando mais uma vez aqui em Maldonado, ainda engatinhando nas amizades, na língua, com sentimentos ainda atrapalhados.

“Quando você deixa ir aquilo que não te serve, você cria um espaço para aquilo que tem que ser ” ( Ava Duvernay ).

Não sabemos ainda se foi a decisão correta, se é o caminho certo. Mas é um caminho, certo?

O fato é que a vida no Rio, foi intensa e boa, mas já não nos servia mais. As pessoas sim, me farão falta. Mas os amigos, a gente carrega junto, no coração. A amizade não é só uma coisa física. E a internet facilitou tudo, felizmente.

Desculpem-me todos meus amados dezenove leitores, só hoje tive ganas e tempo de sentar-me para atualizar meu blog. A vida como chacreira põe calos nas mãos, mas muitas sementes na alma. Quando germinar mais alguma coisa voltarei aqui para compartilhar com vocês.

 

 

Não, eu não sou boa

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Não, eu não sou boa, não. Sou apenas alguém que enxerga. E que hoje precisa desabafar, descarregar sombras na luz das palavras deste blog. Preciso falar sobre o estado das coisas. Tenho estado impactada, consternada com o estado dos animais. O estado de abandono dos cães que proliferam, perambulam pelas ruas do meu balneário. Grande lixão de vidas. Descaso de um estado, de um município falido em todos os setores.

É com a alma devastada que acompanho em minhas caminhadas matinais a imundície galopante da praia do Cassino. E o despreparo para lidar com a grande população de animais sem teto. Ontem, caminhava com meu marido quando um cão em posição estranha atraiu-me a atenção. De costas pra nós, com a cara enfiada num canto de árvore, semi abaixado, intrigou-me. Nos acercamos. Um animal branco muito magro, com costelas aparentes, esquálido mesmo, lambia incessantemente a orelha da companheira, deitada à sua frente, como que tentando encorajar sua apática parceira. Recebeu-nos com pronta alegria, raquítico, mas não de alma, com evidente e acentuado problema na coluna. Andava com as cadeiras magras arriadas. Fiquei com eles e meu marido voltou em casa para buscar ração   (urgia). Decidimos seguir a caminhada-tentaríamos pensar o que fazer- para retornar ao fim dela. Doeu nosso coração o estado débil daquele casal.

Meio quilômetro depois chegando perto da praia saudei com um sonoro bom dia um jovem cão amarelo que acudiu com o rabo e o espírito feliz. Não tardou acompanhar-nos rua afora enquanto entrava na valeta imunda para tomar água e banho. Pobre criatura!

Solidários ao parceirinho de jornada o protegemos de ataques de matilhas andarilhas e ele, agradecido, escondia-se atrás de nossas suadas pernas. A estas alturas o time crescia. Adiante mais dois cães juntaram-se a nós. Um deles, um peludo louco de brincalhão ( que espírito invejável, quanta jovialidade!) brincava por entre nossas passadas, alegre por nosso encontro casual. Desnecessário descrever o estado do meu coração. É possível sentir dor e alegria pura e plena, concluí, porque foi exatamente o que experimentei. Alegria pelo momento e dor pelo o que o futuro imediato traria com nossa iminente separação ( o que seria deles? ). Procurei dedicar toda minha energia vivendo o momento inconsequentemente. Iniciamos o retorno. Perto de casa passamos por um cavalo magro que pastava solto na beirada da rua Rio de Janeiro, que é asfaltada e de grande movimento. Abandonado, provavelmente por algum carroceiro sem condições de manter sua alimentação. Coração no modo ¨ai, meu Deus¨, de novo. Voltamos para ver os dois branquinhos, sempre acompanhados pelo louquinho e o amigo. Fui recebida com festa pelo macho semi-paralítico e com a mesma apatia, pela parceira. Examinei-lhes os dentes. No primeiro constatei a idade avançada a julgar seus caninos pretos e desgastados. As orelhas não mostravam muito melhor condição. Como havíamos colocado dois potes cheios de ração separei um deles para os outros três saltimbancos- o amarelo, o louco e o amigo. Algariados pouco ligaram. Andava com a vasilha na mão quando meu marido me fez notar que o cavalo da Rio de Janeiro me seguia cheio de fome. Deixei-o enfiar a cara enorme dentro dela e deliciar-se. A estas já éramos uma família composta por três saltimbancos, o casal branquinho da esquina e o cavalo carioca. Logo o louco e o amarelo nos trocaram por outra matilha verdejante. O cavalo desapareceu. Mas amarelinho fiel nos seguia certo de sua aceitação por sua nova família. Com o coração estripado foi preciso grande e dolorosa habilidade para ludibriá-lo. Agradecidos por termos sido adotados por tão puro ser despedimo-nos mentalmente com a alma em estado líquido, escoando amor e dor. Viajaríamos no dia seguinte. A vida seguiria sem sabermos se um dia nos reencontraríamos. Mas penso nele seguidamente.

Não, eu não sou boa. Apenas enxergo bem. A visão faz sofrer. Mas também pode agregar muita lucidez e beleza à vida.

(O cavalo reapareceu e está sendo alimentado na minha rua. Procuro um campo para ele).

( Descobrimos em conversa com vizinhos que o casal branquinho é cuidado por alguém que mora na mesma rua. Estamos de olho porque não aparentam boa condição, enfim, não estão ao relento ou largados à própria sorte. ) 

Sobre cheiros e saídas

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De uns tempos pra cá tenho me sentido incomodada, invadida por um cheiro esquisito no ar, no condomínio onde moro. É um elemento estranho. Percebo um componente químico em suas notas, corrosivo ao meu bem estar. Tenho deitado com um tiquinho de perfume sob as narinas para distraí-lo. Pensei: talvez seja o enxofre destilado pela politicalha da cidade. Mephisto à solta, como mencionado na coluna de Arnaldo Bloch no jornal de hoje. Ultimamente esta tem sido minha desculpa favorita para muitas das principais mazelas que me afligem. Culpar os mephistosinhos do Rio e o resto espalhado pelo país.

Só eu sinto o cheiro. Por mais que eu tente descrever, não consigo que os de casa percebam e entendam do que estou falando. Assim é também com o som emitido pelos miquinhos que vivem ao meu redor, quer dizer, na floresta da Tijuca. Meu marido não consegue captar. A emissão acontece numa frequência que Kadado não consegue alcançar. Toda a comunicação da alegre confraria passa frustrada por seus ouvidos.

Bem, também eu, desde ontem estou tentando e não consigo alcançar o planeta onde se meteu nossa pérola negra. Só queria poder beijar sua testa e dizer: obrigada, Luis, tua melodia te abra portas maiores que as que abristes na terra. Como disse Maria Bethânia em seu show na noite passada: “a estrela africana brilha no céu.” 

Hoje numa das colunas mais bonitas do jornal, alguém que escreve muito melhor do que eu, sintetizou o guerreiro. No brilhante artigo de Zélia Duncan ela o define: “bálsamo negro, lindo, ágil, profundo”. Eu acrescentaria “singular“.

Esqueci o caos, a má política, a desordem infligida aos nossos sentidos e saí no encalço do samba blue note de Luis, grata por sua passagem breve e intensa, mas com o coração uva-passa por sua saída da nossa órbita. Tudo leva a crer que perdemos também um grande ser humano. E digo isso baseada no depoimento de um motorista de Uber a mim, numa corrida no início do ano, que o conhecia bem e com quem conviveu por um bom tempo. Disse que Melodia era um homem simples e devotado à família. Era gente. Gênio e gente. Pessoa tamanho GG.

Falando em gratidão, hoje cedo abri os olhos, era ainda madrugada, vi o rosto descansado do meu marido afundado na nossa boa cama de lençóis cheirosos, senti o calor do corpo do gato Nelsinho aos nossos pés. Aguçando ligeiramente os sentidos preguiçosos escutei o ressonar alto da nossa cadela Ming Yu na sua cama ao lado dele, depois atravessei mentalmente o corredor até alcançar a presença de meu filho no quarto à frente. Imaginei-o dormindo com o gato Romeu, então sorri de contentamento e felicidade pela família que formamos. Fechei os olhos e voltei ao sono.

Taí. Este é o cheiro da satisfação plena. O perfume que dorme todo dia sob meu nariz. A frequência exata do som da vida que projetei pra mim. Fechei os olhos com a oração recém formulada no coração. O tipo de oração satisfeita que não precisou nascer da boca para existir. A melhor de todas. A que alcança e alegra -imagino eu- Aquele que tudo sabe, naquele lugar onde agora remexem as cadeiras e tamborilam os dedos Luis Melodia, Leonardo, meu pai Romildo e tantas outras boas criaturas.

oração ao filho desgarrado

 

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Meu filho, eu não sei se irei para o céu, mas eu queria tanto te reencontrar!

Assim que eu soltar os pés do planeta e pular no teleférico mundo acima, que tal a gente marcar encontro em frente ao portal dourado? Lá onde dá para escutar o som de trilhões de asas batendo e onde todos reivindicam o direito de entrar. Assim, Leozinho, mesmo que eu não consiga, teu abraço e teu sorriso angelicais, mesmo que breves, serão meu antídoto contra a saudade eterna que terei que suportar.

Estranha dualidade de sentimentos, a minha! Amo viver, mas carrego a pressa dos que amam. Esta escolha, felizmente, não está no menu terreno. E assim fico por aqui, rezo por ti, peço pra ti, enquanto espero, espero, espero.

Que meu amor te alcance onde estejas e te acarinhe os cachos.

E que tua iluminação me desça pelas mãos neste toque perfeito, amalgamando nossas almas para todo o sempre, de modo que não haja mais necessidade alguma de ter-te ou saber-te.

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Percepção

Leo e eu

Percebi que a dor transformou-se em poesia para doer menos…ou para explicá-la.

Percebi que o mundo tem dores e que todas são dolorosas pra quem sente.

Percebi que posso ser feliz com menos, bem menos…até menos um filho.

E que tenho ainda tanto e sempre terei…a agradecer.

 

Como uma deusa

O horóscopo avisava: “este é um dia em que sua sensibilidade aflora e faz com que você sinta tudo com mais intensidade, por isso procure manter uma postura positiva. É tempo de estar consciente do seu humor”.

Mas o que de fato aflorou foi o desespero. Estou há dois dias vagando como alma penada por lojas de vestidos de gala, de aluguel de roupas de festas e nada, absolutamente nada, ficou do tipo: ó, este vestido é simplesmente fantástico!

Alguns caíram como uma pedra, isso sim, num enrosco de mil forros, perdida na profusão de quilos de rendas e atolada em pedrarias. Fiquei entalada pelos braços, beliscada por zíperes e suando como uma picanha na brasa. As vendedoras, super solícitas e risonhas, me atiraram em cima uma dezena de opções, segundo elas, ideais para mim. O primeiro vestido me transportou para dentro do casamento da novela Caminho das Índias- hare baba! num modelo justo cheio de filó entremeado de ricos bordados de cima a baixo, num tom azul esverdeado, o autêntico mar do caribe plasmado no corpo da tiazona indiana. Olhei-me. Não era eu. Era a sogra do Raj.

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Claúdia Lisboa tentou me prevenir que hoje eu sentiria tudo com maior intensidade. Já no modo Desencanto, sugeri customizações. Quando vi que não faria a alegria de nenhuma das atendentes passei a entretê-las com um repertório fofo e engraçado. Seduzi uma a uma antes de dar o veredito negativo para a compra dos rocambolescos trajes das mil e uma noites. Eu precisaria escolher-cheguei à conclusão- entre parecer uma senhorinha casta ou uma piranha de alto escalão. Irmã cajazeira ou quenga do Bataclan.  

Juro que o tempo todo procurei manter a calma, o bom humor e encarei tudo com energia positiva. Para acalmar os nervos procurava dizer para mim mesma que ainda tinha um mês e pico para um dos casamentos e dois para o outro.

Não quero desesperar minha futura cunhada, mas não estou gostando nadica desta experiência de ser madrinha de casamento. Amo o preto, os tons escuros e eles não poderão me salvar nesta empreitada por causa das normas da “boa fada-madrinha que se preze”. Quem sabe até o início do próximo mês eu já tenha emagrecido uns quatro quilos e não dependa do horóscopo para me ensinar a ter postura positiva. Quiçá, a varinha de condão me ponha na frente daquele modelito elegante e sóbrio que me deixe ser eu mesma e não uma traveca mega produzida fim de carreira. E eu comece a amar esta experiência que, inshallah, terá um happy end

Partiu costureira!

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OLHOS DE ALÉM-MAR ou As Mulheres Fernandes

 

 

 

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Tá, foi cheia de vaidade (e desconforto) que cometi esta postagem.

Maquiando os olhos domingo de manhã fui traída por eles e egocentricamente abduzida por uma iluminação espontânea: “Minha família é de uma estirpe de mulheres de olhos brilhantes”. Da parte de mãe.

Há neles um viço, pode ser um transbordamento de energia vital, um magnetismo, sei lá, um borogodó qualquer ancestral capaz de seduzir pessoas desavisadas; de atraí-las e aprisioná-las temporariamente nas malhas da retina deste mulherio. De modo que há pouca chance da conversa não passar primeiramente pela vivacidade dos olhos das mulheres da família Fernandes, antes de prosseguir.

Pensei nos mares desbravados pelos navegadores lusitanos, na fagulha curiosa em busca de novidade de terras e nas mulheres fortes que eles amaram. E acreditei, de repente, nesta carga genética ¨trespassada¨ de mãe para filha através dos tempos. E na beleza que é ter este traço, esta força, esta sina.

Pauso esta escrita para voltar ao rímel que espera impaciente por minha mão. Feliz por esta descoberta tardia. E por redescobrir como é salutar embarcar, vez por outra, na nau desgovernada da imaginação. E -aleluia- ver pela primeira vez… nossos olhos de além-mar.

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Por que o ser humano tem dificuldade em  reconhecer seus pontos de força? Quanta ingratidão e falta de humildade! Afinal, ser humilde, me disse Frei Lino em Rio Grande, é ser verdadeiro.

Agradeço às amigas que tentaram me dizer tudo isto, de alguma maneira, ao longo dos anos. Nossa cegueira pode, com sorte, ter prazo de validade. E um dia a gente vê. E acaba sendo grato por isto. À Christina Lahmeyer, meu obrigada em especial!

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