Diário de porta de hospital

Esperando para fazer o ecocardiograma-falta uma hora, porque o intervalo entre os exames é grande- não paro de exercitar o sentimento de agradecimento. Do lado de fora do consultorio onde estou, observo. Numa das duas salas entra o ancião na maca com o balão de oxigênio, agradeço (e, ato contínuo, peço por ele). Estou ficando velha. Ando cada vez mais sensível, penso.  Passa a senhora encurvada, uma tábua de passar roupa dobrada, que dó!  O que ela fez ou deixou de fazer para acabar assim? Sedentarismo, doença crônica, cuidou demais dos filhos, quiçá dos netos e se perdeu no esquecimento de si própria? Erro médico, excesso de medicações ao longo da vida longa? Hereditariedade, acidente, erro médico? estou numa prova e quem sabe é uma questão de múltipla escolha. Os pensamentos se entremeiam com as sensações e isso só complica meu quadro de empatia aguda. Agradeço. Seria melhor se fosse insensível? Sim. Mas quanta coisa eu estaria perdendo por esse mundo afora.

Sai o senhor do balão de oxigênio da sala, olhos cansados de vida, e eu agradeço por não ser eu ou ninguém da minha família. A porta fica aberta e a médica ( técnica?) tem obesidade mórbida.  A cadeira afundada geme esgotada. Inconscientemente desejo não ser chamada nessa sala e sim na outra. Que feio isso! Mas o auto desleixo dela denota uma falta de amor para consigo mesma, deduzo. Eu julgo o tempo todo. Como evitar ser assim? Mas agradeço de novo por não ter aquele corpo. E agradeço uma vez mais por esse tempo de espera que me fez retomar meus escritos. Falta pouco para ser chamada e a porta aberta é a da gordinha. Para, Denise!

O estômago ainda ronca de fome. Podia ser pior, penso, e agradeço à maçã que elegantemente quebrou meu jejum de onze horas, sentada ao sol, na frente do hospital, onde a vida beirou de novo à famigerada normalidade, enquanto a comia.

Foto por u0421u0430u0448u0430 u0421u043eu043au043eu043bu043eu0432u0430 em Pexels.com

A outra sala se abriu, mas não fui chamada. Esvazia-se o corredor e não vejo a hora de estar em casa e almoçar com o marido. Ele está cozinhando pra mim lá em casa. Agradeço o homem bom que encontrei.

Pela porta entreaberta vejo. A gordinha continua na frente da tela. Que tristes seus tornozelos inchados saltando da meia! Mas que voz tão doce!  A língua castelhana glamouriza o seu linguajar técnico.  Sempre amei essa língua! Era pequena e me apelidaram de ” rádio El Mundo” por meus esforços e transmissões em portunhol.

Foto por Murry Lee em Pexels.com

Falei com a gordinha. Confirmou que o Dr. Machado é o da sala ao lado e que está atrasado. Que fome! Capaz ela tenha um pacote de Oreo na sua bolsa. Agradeço por não ter visão de raio X.

São quase 13 horas e sigo na saga da espera. Já se foi meu estoque de agradecimentos.

Paro se escrever, pois estou fraca e desestimulada demais para continuar batendo o dedo nas teclas. Um último agradecimento restou. À barriga zero que estou.

Sequei.

10 comentários em “Diário de porta de hospital

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      1. Delícia de texto!! Será que se lembrou de agradecer pelo o dom/habilidade de usar as palavras para expressar tão bem o que quer que vc queira? Fosse eu, lá estaria apenas a balançar as pernas, entediada. Iria julgar tb, claro, rsrs. Apesar das mazelas descritas, me diverti contigo, menina rádio El Mundo. Besitos!

  1. Denise …amei todas as reflexões, mais que humanas, em um tom de interpretação de nossas normais anormalidades.
    Que enfim seja um olhar também de gratidã, por estarmos vivos e com saúde.
    Bj!

    1. Rezinha, esta é minha terceira resposta. Espero que agora vá rs Gosto tanto de saber que ainda me prestigias e participas de minha trajetória , sempre com teu olhar atento, de amor. Bom te ter no meu blog ( reabilita o teu). Feliz de sentir-me acompanhada mesmo que virtualmente e na alma, como fieis hermanas do Sopé da Montanha.

  2. Ah esse olhar crítico e observador que gera conteúdos inspiradores.
    “Porta de Hospital” É uma sucessão de solilóquios de uma mente inquietante produtiva. Amei! ♥️
    Escreva mais e sempre!!

  3. Esse seu olhar, tão sensível para as situações mais ordinárias, torna tudo extraordinário. Obrigada por tuas reflexões que me inspiram a tentar treinar o meu olhar também. Sucesso pra ti.

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